sexta-feira, 19 de outubro de 2012


Um epitáfio para Hobsbawm

Beatriz Vargas Ramos


O sociólogo Demétrio Magnoli brinda-nos com duas aparições na edição da Folha de S.Paulo do dia 10/10/2012. Na primeira, um texto de três colunas intitulado “O esqueleto que sorri”, afirma que o autor de Age of extremes (the short twentieth century: 1914-1991) “falsifica a história para absolver Stalin”. Resume o articulista, a “versão” de Eric Hobsbawm sobre a 2ª Guerra “foi aquela fabricada em Moscou”, afirmação, esta sim, capaz de fazer sorrir outros esqueletos, mortos ou vivos, porque bem ao agrado daquela direita que anunciou o fim da história com a queda do muro de Berlim. Na segunda aparição, ouvido a propósito do julgamento de José Dirceu (“repercussão”, coluna à direita), o sociólogo oferece o seu ponto de vista: “O STF decidiu aplicar a lei, que não exige atos de ofício, documentos assinados, gravações para se condenar”. E firma sua jurisprudência: “Essas exigências têm como fim assegurar a impunidade de poderosos”. A crítica raivosa e a opinião sobre o julgamento têm em comum a marca da simplificação catequista.
Somente quem não conhece nada da obra – ou da vida – de Hobsbawm corre o risco de concluir que o sociólogo está “desmascarando” um stalinista. O argumento mais forte nesse sentido é o fato de não haver renunciado “à carteirinha do Partido Comunista Inglês”. O texto é uma marmita requentada, cuja originalidade está na sugestão grosseira de um epitáfio para o historiador marxista. O articulista toma distância da boa crítica para fazer uma execração de base ideológica. Para ele, que vai buscar o “incontornável” epitáfio em Tony Judt, Hobsbawm deveria ser sepultado como um homem que “se recusa a olhar o mal de frente e a chamá-lo pelo nome” e que “nunca confronta a moral nem a herança política de Stalin e suas obras”. “Se ele seriamente deseja passar o bastão radical para as futuras gerações, este não é o modo de agir”.
A citação é um excerto extraído do ensaio de Tony Judt, Eric Hobsbawm e o romance do comunismo, cuja primeira versão foi publicada no New York Review of Books, em 20 de novembro de 2003, volume 50, nº 18, sob o título original The Last Romantic – Interesting Times: A Twentieth-Century Life by Eric Hobsbawm[1], no qual o autor dedica especial atenção ao livro Tempos Interessantes (Interesting Times), uma narrativa histórica e autobiográfica de Hobsbawm. A coletânea de ensaios de Judt foi publicada no Brasil em 2008, pela Objetiva, com o nome Reflexões sobre um século esquecido: 1901-2000. O trecho entre aspas, selecionado pelo articulista, está ao final da página 147.
Claro, Tony Judt, ele próprio, o autor da crítica, não teria sugerido estas palavras como epitáfio para Hobsbawm. Muito ao contrário, tendo partido desse mundo quase dois anos antes do amigo e colega de profissão (Tony Judt nasceu em 1948 e Hobsbawm em 1917), a ele as endereçou, de maneira corajosa e elegante, enquanto o criticado ainda era vivo, pelo prazer do debate intelectual aberto entre “historiadores politicamente comprometidos” – para usar de uma expressão do próprio Hobsbawm, em artigo (After the Cold War – Eric Hobsbawm remembers Tony Judt) que saiu na London Review of Books, vol. 34, nº 8, p. 14, em 26/04/2012.[2]
É recomendável a leitura do ensaio de Judt em sua íntegra (Eric Hobsbawm e o romance do comunismo, pp. 137-150). O que ali se vê é realmente uma opinião bastante dura, ou “ataque implacável” (implacable attacks), nas palavras usadas por Hobsbawm (artigo da London Review of Books), mas, ao contrário do que podem sugerir as três colunas da Folha, em nenhuma passagem do ensaio de Judt será possível encontrar nada parecido com o julgamento extremista e desmedido do articulista – “história de cartolina”, “contrafação da história”, “veredicto de absolvição dos processos de Moscou”, “falsificação deliberada”, entre outras.
Ninguém melhor que o próprio Hobsbawm para oferecer uma resposta a Tony Judt. Nos tempos da Guerra Fria, suas preocupações também não eram as ameaças soviéticas aomundo livre”, “mas as discussões dentro da esquerda”; “seu tema sempre foi Marx, não Stalin e o Gulag” (Yet it is evidente from Thinking the 20th Century that his basic concern during the acute phase of the Cold War was not the Russian threat to the ‘free world’ but the arguments withim the left. Marx – not Stalin and the Gulag – was his subject).
Dentro da esquerda, registra Hobsbawm, o ideal de seu crítico era a restauração da social democracia.
No ponto específico da discussão entre os dois historiadores, o artigo de Hobsbawm, na London Review of Books, é de leitura obrigatória para aqueles que não aceitam julgar sem antes dar a palavra ao “acusado”. Aqui vai um trecho especialmente interessante:
Tony foi, é claro, tão anti-Stalin quanto qualquer outro, e crítico amargo dos que não abjuraram o Partido Comunista, mesmo que se tenham provado satisfatoriamente anti-stalinistas e, como no meu caso, já estejamos lentamente nos livrando da esperança original de outubro de 1917. Como os sionistas que se opuseram a encenações de Wagner em Israel, Tony foi dos que deixam a antipatia política se antepor ao prazer estético, descartando o poema de Brecht sobre quadros do Comintern, An die Nachgeborenen (Os Admirados por Tantos), como poema “repulsivo”, não em termos literários, mas porque inspirava pensamentos maléficos aos crentes.
Como crítica, o texto do articulista da Folha não traz nenhuma novidade, ao menos não naquilo que constitui o núcleo de conhecidas censuras, velhas e surradas críticas há muito dirigidas a Hobsbawm, todas elas variações de um mesmo tema central que é “poupar Stalin ou absolvê-lo”. E isso “por não ter abandonado o partido” ou não haver renegado o passado de ativismo comunista, argumento igualmente conhecido e já explorado à exaustão. Eric Hobsbawm nunca omitiu o lugar de onde estava falando e não se escondeu atrás da autoridade, real ou suposta, deste ou daquele intérprete da história. Não renegou os tempos de militância comunista, mas foi tão anti-stalinista como “todo mundo”, pode-se dizer. Pouco antes de sua morte, às vésperas de completar 95 anos de idade, atravessando, ele mesmo, quase um século inteiro de vida lúcida e intensa, revela que já estava se “livrando, lentamente, da esperança original de outubro de 1917”. Sua historiografia marxista, livre de mitos, sobrevive às “marteladas” de 1989 num certo muro em Berlim, entre outras razões, porque não escolheu para si a tarefa de “julgar” a história, mas “compreendê-la” – para usar das expressões de Marc Bloch.
O que a crítica de Magnoli tem de mais perverso é que despreza exatamente aquilo que constitui o grande referencial da memória sobre Hobsbawm, sua luta contra o fascismo. É o que diz Alexandre Fortes, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro[3]:
Forjado intelectual, política e eticamente na luta antifascista, Hobsbawm dedicou uma longa vida de trabalho intenso a fazer do estudo crítico do passado um instrumento para ampliar a capacidade dos seres humanos construírem coletivamente um futuro melhor, desafiando o poder esmagador de fatores estruturais de diversas ordens.
Em sua última publicação, lançada no Brasil em 2011 pela Companhia das Letras, Como mudar o mundo, uma coletânea de vários textos escritos entre 1956 e 2009, esclarece Hobsbawm:
...a maioria dos capítulos dirige-se a leitores com um interesse maior por Marx, pelo marxismo e pela interação entre o contexto histórico, de um lado, e o desenvolvimento e a influências das ideias, de outro. O que tentei fazer foi mostrar a esses dois grupos que a discussão de Marx e do marxismo não pode ficar limitada ao debate a favor ou contra, ao território político e ideológico ocupado pelas diversas e mutantes variações marxistas e de seus antagonistas. Durante os últimos 130 anos, o marxismo foi um tema importante no concerto intelectual do mundo moderno e, através de sua capacidade de mobilizar forças sociais, uma presença crucial e, em alguns períodos, decisiva, na história do século XX. Espero que meu livro ajude os leitores a refletir sobre a questão de qual será o futuro do marxismo e da humanidade no século XXI.
A propósito da “valiosa” historiografia britânica que se seguiu ao fim da 2ª Guerra, Josep Fontana (História – análise do passado e projeto social. Bauru, SP: Edusc, 1998, p. 244) aponta, além de Eric Hobsbawm, também Gordon Childe, Christopher Hill e Rodney Hilton. Por isso mesmo, quando o articulista, sem medir excessos, no auge de seu delírio ideológico, apresenta a historiografia de Hobsbawm como “inspirada diretamente pelas narrativas oficiais fabricadas por Moscou no imediato pós-guerra”, ele não deve ser levado a sério. Esta é uma lógica parcial, pobre e empobrecedora que não atinge um homem só, mas toda uma escola de historiadores. Eis a idolatria ao “monismo da causa”, o sofisma do inquisidor: “todo comunista é stalinista, logo, propagador da história oficial de Moscou”. A frase é anacrônica e panfletária. Podia causar algum impacto no Brasil, ao final da década de 70 e início dos anos 80, quando diversas correntes de esquerda marxista discursavam como se a Guerra Fria fosse assunto do jornal do dia e vendiam – ou doavam – seus jornaizinhos panfletários repletos de frases de efeito. Nesta época, Magnoli era trotskista – não sei se ainda é... Hoje em dia a frase panfletária soa como dizer que “antissionismo” é o mesmo que “antisssemistismo”. Não “cola” mais – pelo menos não em todos os países e para a uma grande parte dos leitores.
A historiografia de Hobsbawm passou pelas “provas científicas” e sobreviveu a outras acusações da mesma ordem que lhe foram lançadas no passado. O ataque do articulista carrega a mesma “justificativa” que determinou a perseguição contra os historiadores marxistas no pós-guerra, quando foram acusados, “por insignes mediocridades acadêmicas, como Hexter”, de “trair a dignidade do ofício” (J. Fontana).
Depois de 1956, “convencido de que o Partido, por não ter se reformado, não tem futuro político a longo prazo no país”, Hobsbawm abandona o ativismo comunista, “embora sem sair do partido”, como repara Tony Judt. Sobre a crise política de 1956, com a intervenção soviética na Hungria, Fontana novamente (A história dos homens. Bauru, SP: Edusc, 2004, pp. 330 e ss) registra que nenhum daqueles historiadores “abandonou, no trabalho intelectual, uma linha que, embora com mais liberdade, conservava o essencial da inspiração marxista”, citando Thompson e Hobsbawm, como estudiosos da “história dos de baixo”, “marcados pela preocupação em recuperar os rostos da multidão”.
Hobsbawm não se dedicou à mentira, como também não escolheu ser juiz de Stalin ou seu biógrafo. Um bom juiz, desses que não dispensam as provas, concluiria que as acusações do “advogado” Demétrio Magnoli não têm procedência. O historiador não é o homem que o articulista quer enterrar como um covarde da esquerda que, por muito tempo, como disse Tony Judt, “evitou confrontar o demônio comunista preso no armário da família”. Ao revés, ele teve coragem suficiente para “examinar as próprias certezas e ver como a própria vida de cada um é modelada e remodelada pelo seu século” (palavras de Hobsbawm para Tony Judt, no mesmo artigo já citado, que se aplicam perfeitamente ao seu autor). A verdade é que ninguém pode passar pela história dos três últimos séculos sem fazer referência à obra do historiador inglês.
O uso elegante do substantivo “advogado” em relação à postura do articulista da Folha deve-se, mais uma vez, a Hobsbawm, que numa passagem do mesmo artigo já citado se refere a Tony Judt nos seguintes termos: “Sua posição-padrão era de profissional da lei: não de juiz, mas de advogado, cujo objetivo não é nem a verdade nem a verossimilhança, mas ganhar a causa”. O articulista da Folha não está interessado na possibilidade de outras leituras ou versões diferentes da sua, quer ganhar a causa (o “interesse”, a “demanda”), emplacar sua acusação contra o historiador marxista. Não é que não tenha lido Hobsbawm, é pior. É que distorce o texto, não consegue ir além da superfície e não considera, em nenhum momento, o contexto que envolve história (narrativa) e historiador (autor da narrativa). Pior do que um mau juiz, trabalha com as técnicas de um inquisidor. Ofereceria ao “acusado” a salvação de sua alma se este tivesse abjurado o “demônio comunista” e aceitado, com resignação, a “verdade” da inocência norte-americana durante a Guerra Fria, abraçando, sem reservas, o evangelho capitalista pós 1989. O que é imperdoável em Hobsbawm – para Tony Judt, e genericamente para Magnoli – é não ter adotado o pensamento, muitas vezes lançado da academia, de que Socialismo=Gulag. Outro pecado de Hobsbawm foi contextualizar a importância da URSS na derrota do nazismo e apontar o fato de que “não está claro sob que circunstâncias (os E.U.A.) poderiam ter entrado” na 2ª Guerra Mundial, “não fosse Pearl Harbor e a declaração de guerra de Hitler” (Era dos Extremos, capítulo 5, “Contra o inimigo comum”).
Nas páginas de Era dos Extremos, não se vê a tão alardeada sentença absolutória de Stalin nem a contrafação da história – bobagens que a mídia brasileira, de maneira mais ou menos incisiva, está ressuscitando desde a morte recente do historiador inglês. O mesmo Hobsbawm, entretanto, é apresentado por leitores, que vão de uma direita triunfalista do fim da história até uma esquerda congelada nos anos 50, por rótulos que variam de “stalinista” a “anticomunista”. Em que pese não haver mentido sobre Stalin, presidente da era de ferro soviética que “manipulou o terror em escala universal”, como um “autocrata de ferocidade, crueldade e falta de escrúpulos excepcionais, alguns poderiam dizer únicas” (Era dos Extremos, p. 371), sem omitir os gulags, a exploração da força de trabalho de milhões de prisioneiros, Hobsbawm continuará tendo maus leitores, orientados pela ideologia que apenas conseguem enxergar no outro, nunca em si mesmos.
Não falta, portanto, até hoje, quem encontre em Era dos Extremos a tolerância ou a defesa do stalinismo e mesmo o seu oposto perfeito, qual seja, o próprio culto ao totem do anti-stalinismo. Essa outra bobagem, entretanto, não ganha o mesmo espaço nas janelas de ver o mundo que a mídia brasileira, generosamente, abre para nós a cada dia.
Para nossa sorte, podemos ler Hobsbawm nós mesmos, dispensando a intermediação do ex-colunista da Folha de S.Paulo, esta sim, “uma aposta segura de que o leitor médio carece de informações indispensáveis para refutá-la”.
O fato de o historiador inglês “ter mais leitores no Brasil do que na Grã-Bretanha”, como diz o articulista, serviu para que este mais uma vez o desqualificasse, atribuindo o fenômeno à “recepção laudatória” de “intelectuais inconformados” com a queda do muro de Berlim. Aí está embutida uma inexplicável arrogância da parte de alguém que integra uma universidade brasileira – ser lido em português do Brasil seria evidência de inferioridade da obra?
Acontece que Hobsbawm não é o historiador mais conhecido no Brasil. É o historiador mais conhecido no mundo inteiro. Ele foi traduzido em mais de 40 idiomas. Disse Tony Judt que “em partes da América do Sul – especialmente no Brasil – ele é um herói cultural popular”. Apesar do exagero de seu colega – “herói cultural popular” – que não consegue disfarçar a pontinha de inveja do outro historiador, deve-se registrar o grande feito, porque, no Brasil, afinal, não é fácil a concorrência com o Jornal da Globo e com a novela das 8. E isto, sobretudo, em tempos como os atuais, em que a maioria das pessoas se contenta com a história dos fotógrafos e os próprios historiadores têm pouco espaço entre os leitores que estão fora da academia.
O articulista da Folha dá preferência a uma versão parcial, a uma versão que relegue ao segundo plano, ou apague em definitivo, o papel desempenhado pela União Soviética, ou mais que isso, o papel do socialismo, na derrota dos facismos, reduzindo-a à figura de Stalin e decretando que a “URSS não triunfaria sobre Hitler sem a vasta ajuda militar americana”. Convém registrar que Hobsbawm não trata da atuação norte-americana na perspectiva de “ajuda”. Ele fala de uma situação histórica excepcional em que EUA e URSS “fizeram causa comum” contra a Alemanha de Hitler, “porque a viam como um perigo maior do que cada um ao outro” – o capítulo 5, parte 1, de Era dos Extremos intitula-se “contra o inimigo comum”. A frase simplista de Magnoli sugere, equivocadamente, o maniqueísmo da obra, quando, na verdade, é o articulista que não consegue disfarçar essa tendência.
Em conclusão, não estou afirmando que Hobsbawm está acima de críticas ou livre de erros. Ninguém está. A questão é que o bom crítico, por mais duro que seja, tem a obrigação de não ocultar o objeto de sua crítica, porque precisa lidar com a complexidade da obra criticada, sob pena de reducionismo, de simplificação. No meu modo de ver, não é fácil realizar uma boa crítica, porque esta é uma arte que pressupõe, em primeiro lugar, saber ouvir. Essa abertura ao horizonte do “outro”, o criticado, é, como eu entendo, algo que não se confunde com passividade, mas é pressuposto inarredável de honestidade intelectual. Numa palavra, o bom crítico não se desincumbe dessa tarefa apenas por demonstrar seu talento em construir boas frases de efeito. Ele deve demonstrar, acima de tudo, que conhece o que critica. A crítica reducionista é ainda pior do que a pior obra criticada.
A melhor resposta a esse tipo de crítica foi dada pela ANPUH – Associação Nacional dos Professores Universitários de História – a uma certa revista de má visão e se aplica inteiramente às três colunas do articulista:
Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal.
Em outra ocasião, o sociólogo já se mostrou um mau leitor ou, quem sabe, um não-leitor, a propósito da monografia de Karl Philipp von Martius, o botânico que venceu o prêmio oferecido pelo IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1840, para quem apresentasse o melhor trabalho sobre como escrever a história do Brasil, ou, como conferir uma identidade ao Brasil-nação, ou ainda, como disse Lilia Schwarcz, como “inventar uma história para o Brasil”. O sociólogo viu na monografia de Karl von Martius a ideia de que a história do Brasil deveria ser contada como uma “história de mescla de raças, o encontro, a confluência de três rios, o rio dos africanos, o rio dos europeus e o rio dos índios”, numa época em que os E.U.A. e a Inglaterra queriam separar as raças e promover o retorno dos negros à África – e, mais que isso, estavam fundando países que iriam receber de volta os ex-escravos, como a Libéria e a Serra Leoa. “Esqueceu-se”, no entanto, de dizer que o Brasil também embarcou muitos negros libertos para a África, entre os séculos XVIII e XIX, cujo destino era a cidade de Lagos (Èkó, em iorubá), na Nigéria. O que ele destaca como “interessante” é que, enquanto no Brasil se falava “na mescla, na mistura”, os outros países “estavam falando na separação de raças”. Este seria, para Demétrio, “o ponto de partida legal para se pensar uma ideia de nação aqui no Brasil”. Propõe, na verdade, a refundação da ideia de democracia racial brasileira que só muito recentemente vem sendo desmistificada.
Magnoli sugere um retorno ao ponto de partida lançado em 1840, exatamente aquele que, nas palavras de José Carlos Reis, “se entranhou profundamente nas elites e na população brasileira”, pois o que Von Martius lançou foram “os alicerces do mito da democracia racial brasileira”, o “elogio da colonização portuguesa” que, mais tarde, vai reaparecer com Gilberto Freyre, como “reelogio”, na abordagem cultural e “empática” de Casa Grande & Senzala – ainda de acordo com José Carlos Reis (As identidades do Brasil, vol 1. Rio: FGV, 2007).
Ele não vê, ou não quer ver, que os três rios – “Precisa ler!”, como disse Lilia Schwarcz – compunham uma unidade construída na base da hierarquia e na diferença entre brancos, negros e indígenas. Lilia Schawrcz explica, em entrevista no programa de Jô Soares: Von Martius dizia que “há um rio importante, muito caudaloso, o rio branco”, um outro rio “mais ou menos” e “que faz muitas curvas”, o rio negro, e finalmente um “rio pequenininho que é o rio indígena”.
“No essencial” – diz José Carlos Reis a propósito do “ponto de partida de Magnoli” – “a história do Brasil será a história de um ramo dos portugueses, pois o português foi o conquistador e senhor, ele deu as garantias morais e físicas ao Brasil”, “foi o inventor e motor essencial do Brasil”. “Quanto às demais raças, o historiador filantrópico, humano e profundo cristão, não poderá deixar de abordá-las. Deverá defender essas raças desamparadas”. Por isso, “dará alguma ênfase à história dos indígenas”, mas, “quanto ao negro, ele será breve, oferecendo poucos dados e propondo algumas poucas questões”.
Penso que Magnoli leu Von Martius, mas aqui também distorceu o texto. Aqui novamente se comporta como o homem de uma causa única, que prefere um processo sem provas, afinal, exigências probatórias não passam de firulas que existem apenas para assegurar a impunidade – “dos poderosos”, acrescenta. Ele não busca a verossimilhança com a preocupação de um juiz, mas apenas quer “ganhar a causa”. É sabido que o sociólogo é um forte opositor da política de cota racial. Não seria absurdo concluir, nessa linha, que o ponto de partida de Von Martius seria um bom argumento para sua causa, desde, é claro, que os “três rios” não sejam apresentados exatamente como os descreveu o alemão que ganhou o primeiro concurso de monografias do IHGB.
Como crítico, é advogado; como juiz, é inquisidor e como ex-articulista da Folha de S.Paulo surge e ressurge como as ondas na qualidade de “opinador de plantão”. Desta vez, revelou-se um entendedor das leis processuais. Sua tese é clara, provas são exigências para absolvição dos poderosos (“...atos de ofício, documentos assinados, gravações para se condenar”, são “exigências” cuja finalidade é “assegurar a impunidade de poderosos”). É bom registrar que, à parte as discussões sobre o grau de certeza, a verossimilhança, o indício – algo provável entre o certo e o incerto, todos nós temos direito a opiniões. Ao STF compete julgar. De minha parte, trago dentro de mim uma esperança, a de que a opinião de Magnoli não crie “jurisprudência”, pois não se faz justiça com dois pesos e duas medidas. Além disso, a justiça de todo dia não se realiza sobre “os poderosos”.
Condenar José Dirceu, para muitos, é condenar o PT. O mesmo PT a quem Hobsbawm, em Tempos Interessantes, considera um exemplo político capaz de assegurar consequências e desdobramentos permanentes (afirmação esta que também pode ressoar em certos ouvidos como outro “pecado”).
Na história como no direito, o futuro é construído a partir do presente. Não há um passado que se imponha por si mesmo ou que se imponha como mera hipótese teórica, como crença ou como causa. O problema do historiador com o passado é saber como interrogá-lo, diria Marc Bloch, “a ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente, comprometendo, no presente, a própria ação”. Enfim, penso que é o futuro que está em jogo.
Antes de ser fuzilado pelos alemães em 16 de junho de 1944, Marc Bloch trabalhava em seu último ensaio, publicado em 1949, por Lucien Febvre, com o título Apologie de l’histoire ou Métier d’histoiren. Segundo Bloch, nenhuma hipótese é evidente, é preciso prová-la. A última frase do livro é particularmente importante para os tempos atuais: as causas (aqui no sentido de “explicações”), em história como em outros domínios, não são postuladas, são buscadas.

Um comentário:

  1. Beatriz, teu texto merece ser divulgado amplamente, sobretudo agora que, para não serem lançados ao ostracismo, muitos que se serviram das obras de Hobsbawm serão capazes de não só o negar como de fazer coro com os que o desejam apagar da fotografia.

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